Segurança continua presa a mitos
Vera Regina Pereira de Andrade,
pós- Doutora em Direito Penal e Criminologia pela Universidade de
Buenos Aires, é professora do Curso de Pós-Graduação em Direito da
UFSC. Atua nas linhas de pesquisa de controle social, sistema penal,
cidadania e direitos humanos. Também presta assessoria para o
Ministério da Justiça em trabalhos relacionados à questão criminal.
Desde o início do ano, o Ministério da Justiça está promovendo conferências em diversos locais do país para estimular o debate sobre a segurança. Em agosto, Brasília vai sediar a primeira Conferência Nacional de Segurança Pública, onde serão apresentados os resultados dos eventos anteriores. Vera Regina de Andrade, uma das integrantes da comissão organizadora em Santa Catarina, conversou com o ZERO sobre os problemas do sistema penitenciário brasileiro e a falta de foco nas discussões sobre o tema.
ZERO - Hoje podemos verificar que
o sistema penitenciário enfrenta diversos problemas. A conferência se
preocupa em melhorar esta situação?
A
conferência é um conjunto de promessas e eu acompanho bem criticamente
esse processo. Participei desde o início, fiz parte da comissão de
especialistas que discutiu a concepção da conferência e fiz muitas
críticas ao encaminhamento à prisão.
A concepção do sistema penitenciário é ultrapassada, ainda se baseia na ideia de que é possível ressocializar os presos. A ressocialização é um mito. Ela não é e nunca foi a função real da prisão, que é o controle de classes. Um lugar de produção dos criminosos, não de salvação. Nenhuma instituição fechada jamais vai ter o poder de ressocializar ninguém, até porque, se tem que haver uma ressocialização é da própria sociedade que produz os seus criminosos. O que precisamos fazer é garantir condições mínimas de aprisionamento.
A concepção do sistema penitenciário é ultrapassada, ainda se baseia na ideia de que é possível ressocializar os presos. A ressocialização é um mito. Ela não é e nunca foi a função real da prisão, que é o controle de classes. Um lugar de produção dos criminosos, não de salvação. Nenhuma instituição fechada jamais vai ter o poder de ressocializar ninguém, até porque, se tem que haver uma ressocialização é da própria sociedade que produz os seus criminosos. O que precisamos fazer é garantir condições mínimas de aprisionamento.
ZERO - Quais seriam estas condições?
Condições
que respeitem os direitos humanos. Na verdade, a prisão não é apenas a
privação da liberdade, mas de todos os outros direitos e necessidades
reais, até a vida. Ela deveria assegurar garantias como saúde, educação
e trabalho digno. Isso não é ressocialização. São direitos mínimos
para uma pessoa que está privada apenas de liberdade. Como uma prisão
vai preparar alguém para um mercado, onde há desemprego
estrutural, o ensinando a tecer bolinhas? Isso não é formação, é laborterapia. Uma atividade para a pessoa conseguir suportar o tempo, o ócio, a dor da prisão.
estrutural, o ensinando a tecer bolinhas? Isso não é formação, é laborterapia. Uma atividade para a pessoa conseguir suportar o tempo, o ócio, a dor da prisão.
ZERO - E qual política seria ideal?
Definitivamente
seria investir em menos prisões. Criar penas alternativas. Quem é que
lota as prisõeshoje? Mais de 70% são condenados por crimes patrimoniais
– furto, roubo e tráfico. O que temos hoje é uma criminalização da
pobreza, pessoas de baixo estrato social que são vulneráveis a serem
criminalizadas. A prisão é uma exclusão social. Demarca as pessoas
desconstruindo a biografia de um sujeito para poder construir uma de
criminoso. O sujeito assimila a etiqueta e assume o estigma. Isso é um
tipo de violência intersubjetiva muito clara que todas as instituições
fechadas produzem. A função do hospício é produzir o louco, a do
hospital, o doente, e das prisões, o criminoso. Nós temos que enfrentar
decisivamente isso. Vamos continuar usando prisão e genocídio? Porque a
prisão mata e isso tem que ser dito. Mais do que violar os direitos
humanos, a prisão é uma forma de pena de morte indireta. Funcionam como
extermínio puro.
ZERO - Como se dá esse extermínio?
Entre
presos, entre policiais e encarcerados, externos com presos e
familiares de presos. As famíliascumprem pena junto com eles. Elas
sofrem perseguições, são violentadas, os amigos se afastam, perdem
emprego e têm dificuldade para encontrar outro. Na periferia, a polícia
entra e mata. Funciona na base do extermínio. Começamos matando os
índios, depois os escravos, continuamos a matar na ditadura e hoje, na
sociedade republicana, seguimos matando os presos e os potenciais
presos. A prisão mata no Brasil e vemos isso com naturalidade, falando
de ressocialização. Os debates nem discutem as causas das mortes.
ZERO - Quais penas alternativas seriam eficazes para reduzir estes problemas?
Prestação
de serviços à comunidade, um trabalho real, dar assistência a
instituições de caridade, a velhos, a asilos, a crianças. Oferecer uma
formação.
A prisão é seletiva e estruturalmente desigual. É preciso diminuir a prisão para crimes contra o patrimônio e descriminalizar qualquer produção e consumo de drogas definidas como ilegais. Deslocar isso para um controle sanitário, como é com o cigarro,
álcool e fármacos.
A prisão é seletiva e estruturalmente desigual. É preciso diminuir a prisão para crimes contra o patrimônio e descriminalizar qualquer produção e consumo de drogas definidas como ilegais. Deslocar isso para um controle sanitário, como é com o cigarro,
álcool e fármacos.
ZERO - Como a descriminalização das drogas poderia ajudar?
Ocorrem
mais mortes com a criminalização. O tráfico produz um genocídio em
massa. É uma forma genial dos Estados Unidos continuarem exercendo seu
poder imperial, dar um uso para a indústria bélica ociosa após o fim da
Guerra Fria. Uma indústria que não produz mais armamento para lutar
contra o comunismo, mas produz o sistema penitenciário que é vendido
para encarcerar os criminalizados pelo uso das drogas. Estes são os
andinos, os latinos, os imigrantes. Ou seja, a criminalização tem uma
funcionalização fantástica para o poder econômico global e sobretudo
norteamericano. Além de fomentar o fantástico mercado informal que
movimenta milhões de dólares. Então tem toda uma engenharia construída,
um grande império em torno da criminalização das drogas. Isso está
narrado em pesquisas muito boas que demonstram como a construção bélica
do novo inimigo permite aos Estados Unidos satanizar a América Latina e
manter um discurso de defesa das suas classes médias e altas,
vitimizadas pelo tráfico cuja origem é nossa. A criminalização do
tráfico é um problema político sério. Além disso, tem o terrorismo, que
é o segundo grande inimigo externo.
ZERO
- Falando em Estados Unidos, há debates no Brasil sobre a implantação
de julgamentos através de videoconferência e utilização de pulseiras
eletrônicas.
Como você
encara essas iniciativas Julgamento feito à distância, vender pulseira,
chip, monitorar presídios. Isso é o modelo norteamericano e faz parte
da política criminal como espetáculo.
A utilização da pulseira tem várias inconstitucionalidades. Ela é um artefato estigmatizante e constituição diz que não teremos pena difamante. Eu considero a prisão difamante e cruel. A pulseira é uma pena e não adianta dizer que não é, que é apenas uma maneira de executá-la. Ela é uma pena duplicada e inconstitucional. A pessoa estará cumprindo a pena da prisão e a pena de andar livre. A segurança é um dos temas que mais vende no mundo. Por trás disso, há um mercado gigantesco de empresas privadas em que muita gente está ganhando dinheiro.
A utilização da pulseira tem várias inconstitucionalidades. Ela é um artefato estigmatizante e constituição diz que não teremos pena difamante. Eu considero a prisão difamante e cruel. A pulseira é uma pena e não adianta dizer que não é, que é apenas uma maneira de executá-la. Ela é uma pena duplicada e inconstitucional. A pessoa estará cumprindo a pena da prisão e a pena de andar livre. A segurança é um dos temas que mais vende no mundo. Por trás disso, há um mercado gigantesco de empresas privadas em que muita gente está ganhando dinheiro.
ZERO - No Brasil, há poucos casos de privatizações no sistema penitenciário. Há uma justificativa?
A nossa tradição é diferente dos EUA. A prisão aqui é um elefante branco que assusta
até o mercado. É um modelo que não vingou, os empresários veem mercados mais atraentes no país e acho isso muito bom que isso não tenha acontecido.
O privado pode maquiar a violência do sistema penal. O poder punitivo é do Estado. A tese da privatização tem amplo respaldo popular, pois é vista como eficiente na execução da pena e como um antídoto do medo. Estes são dois apelos fortes para a legitimação do privado. Daqui a pouco o privado não estará apenas fornecendo marmita para os presos, vendendo pulseira e videoconferência. Eles começarão a aplicar pena. Nosso senso comum está refém das ilusões que nos são vendidas com facilidade e amplo apelo midiático.
até o mercado. É um modelo que não vingou, os empresários veem mercados mais atraentes no país e acho isso muito bom que isso não tenha acontecido.
O privado pode maquiar a violência do sistema penal. O poder punitivo é do Estado. A tese da privatização tem amplo respaldo popular, pois é vista como eficiente na execução da pena e como um antídoto do medo. Estes são dois apelos fortes para a legitimação do privado. Daqui a pouco o privado não estará apenas fornecendo marmita para os presos, vendendo pulseira e videoconferência. Eles começarão a aplicar pena. Nosso senso comum está refém das ilusões que nos são vendidas com facilidade e amplo apelo midiático.
ZERO - Na sua opinião, quais medidas imediatas devem ser tomadas para melhorar o sistema no país?
Sempre
trabalho com três eixos: a radical legalização e descriminalização da
produção, comercialização e uso de drogas; penas alternativas para
crimes patrimoniais como furto e roubo; e controle rigoroso do
aprisionamento provisório. O grande motivo da superpopulação dos
presídios latino-americanos é o fenômeno do aprisionamento provisório.
Santa Catarina segue esse padrão. O estado não tem defesa pública, a
advocacia dativa não funciona e ninguém consegue fazer nada porque os
burocratas não permitem. Se não mexermos nisso urgentemente, não
teremos discussão nenhuma para fazer dentro do sistema penitenciário.
por Thaís Goes